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Defende,
antes, “as mil formas de fabular e de
refabular” para que a chama de imaginárias
fogueiras continue vibrando, e expressa a
necessidade de não esquecermos a tradição... |
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A NOITE DOS TEMPOS
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Rosane
Villela*
Nas
labaredas das gerações, o tempo dispara
fábulas. E o homem conta a sua arte, aquecido
pela magia primitiva da oralidade. De Esopo a
Elias José, apenas um sopro, nas diferentes
formas de fabular que resgatam o imaginário
universal. E o que é de um povo expande-se a
favor da humanidade ao pontuar-se através da
recriação.
Da ágora — praça pública dos gregos, local dos
discursos e discussões na Antigüidade Clássica
— aos dias atuais, ainda que o registro das
civilizações nos chegue sob a forma de
documentos escritos que comprovam ou não a sua
autenticidade, o fato é que o homem é um
articulador dos tempos. À procura do
conhecimento não somente de sua história e da
origem da humanidade, como também da magia dos
seus inúmeros mitos, lendas e fábulas.
Se, pelo mito, a história de uma civilização
pode ser contada pela carga simbólica que
adquire para uma determinada cultura; e se,
pelas lendas, pode ser sonhada pela narrativa
fantasiosa que as inclui; pelas fábulas, o
homem encontra o caminho para se exemplificar
por meio da representação de uma idéia
abstrata, através das figuras dos animais.
Nas fábulas indígenas da obra
Ao Pé das Fogueiras
Acesas, de Elias José, esta
exemplificação procede a cargo da cultura a
que elas remetem. Uma exemplificação de
ensinamento, própria da nação, em que pesa a
sua sobrevivência no meio onde vive.
Transferindo a esperteza e a inteligência aos
animais que apresentam desvantagem física
frente aos outros, as fábulas suscitam
situações que sugerem como superar os medos,
reagir face ao perigo, ser criativo, estar
atento ao inesperado, sobreviver na mata,
enfim.
Mas não é por esse viés que o reconto delas
feito por Elias José chega ao leitor. É pela
força encantatória da ludicidade que sua
narrativa o transporta, de maneira muito
prazerosa, ao rito da nação indígena, onde
muitas histórias são aquecidas e recontadas ao
redor da fogueira. O mito indígena, assim, com
poesia, é retomado e nos tornamos também parte
daquela nação, daquela floresta.
Em seu reconto das fábulas — que, no sumário,
aparecem com vinhetas imbuídas de detalhes dos
animais, ilustrados por André Neves —, o
autor, com sua habilidade indiscutível de
contador de histórias, entremeia cantos que
lembram brincadeiras provocadoras de crianças
arteiras, com a utilização rítmica recorrente
dos “Olé, olá, olé, oliri-ri” que iniciam ou
finalizam versos, como nas histórias “ O
jabuti e a onça” e “O jabuti e o elefante” ; e
mantém o mesmo entusiasmo de jocosidade em “A
esperteza do sapo”, “A raposa e o homem”, “A
raposa e a onça” e “As trapalhadas da
aranha-caranguejeira”, com uma narrativa tão
quanto consistente e repleta de diálogos.
Ainda, em um testemunho de amor à tradição,
que apresenta logo na introdução, Elias José
homenageia “Esopo, La Fontaine, Sílvio Romero,
Câmara Cascudo e muitos outros” e avisa ao
leitor para não buscar nas fábulas somente
lições de moral. Defende, antes, “as mil
formas de fabular e de refabular” para que a
chama de imaginárias fogueiras continue
vibrando, e expressa a necessidade de não
esquecermos a tradição e cuidarmos dos dias
atuais, quando afirma: “Hoje, em tempos de
fogueiras apagadas, / precisamos fuçar na
memória / e catar os cacos dos sonhos / para
engrandecer a vida / e não sufocar o mito e a
poesia”.
Também motivado pelo eixo comum aos textos
apresentados — a ludicidade e a reverência ao
gênero —, André acompanha o autor com igual
brilhantismo. Sem estabelecer legendas
imagéticas ao texto de Elias e, com cuidado,
oferece, através da brincadeira de suas
imagens, diversão ao leitor ao mesmo tempo em
que sensibiliza o seu olhar. Para os detalhes
que saltam das formas grandes que cria — como
os olhos expressivos dos animais, que
caracterizam seus sentimentos. Para as
particularidades que pinça do texto — como na
ilustração enorme do elefante que ocupa uma
página e meia, para contrapor-se à do pequeno
jabuti que, com ele dialoga em pé sobre uma
pedra, num cantinho da mesma página. E para o
movimento dos seus traços — como o fio onde a
aranha-caranguejeira se balança; a tromba do
elefante que parece mergulhar numa página
inteira, para segurar a ponta de uma corda
afundada no mar, para o início de uma disputa;
e as letras do título Ao pé das fogueiras
acesas que podem ser visualizadas chispadas,
na cor alaranjada da brasa, pelas labaredas da
fogueira acesa que é circundada pelos animais
da floresta.
Tanto Elias José como André Neves, cada um a
sua maneira, participam do existencialismo
fabuloso ao recriarem a sua própria fábula,
tão verdadeira, na intertextualidade com o fio
condutor primeiro, o das fábulas indígenas.
Com independência um do outro, ainda que
alimentados pela mesma linguagem da
ludicidade, abrem campos de alimentos
distintos ao nosso olhar que, por sua vez,
também recria.
Sai o leitor ganhando duplamente, embevecido
pelo clima de magia e poesia que perpassa toda
a excelente edição da Paulinas, cujas cores
diversas e harmoniosas de páginas — em tons
que passeiam do preto ao amarelo vibrante
—criam a atmosfera propícia e também fabulam
para contar a noite dos tempos. em prazer no âmbito
*
Rosane Villela,
professora de crianças e adolescentes, nasceu
no Rio de Janeiro, em 1953. Graduou-se em
Letras pela PUC-Rio, em 1976. Tem um livro de
poesia publicado pela 7Letras, Navalha no
verso, e textos publicados em sites, revistas
e jornais. Apanhando a lua... , no prelo, é o
seu primeiro trabalho para o público juvenil.
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JOSÉ,
Elias (Ilustrações de André Neves). Ao Pé
das Fogueiras Acesas. Recontos de Elias José
- fábulas indígenas brasileiras. São
Paulo: Paulinas, 2008. (48 p.) |
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