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Professora de literatura por muitos e muitos
anos, jurada de muitos e muitos concursos,
desta vez mudei de lado. Mas levei para o
lado de cá da mesa os óculos do lado de lá
da mesma mesa. |
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MAKING OF
DE "FERNANDO PESSOA, MEU CARO WATSON
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(ou Os
bastidores de um conto)
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Marisa
Lajolo
*
Quando lêem o conto com que me inscrevi no Concurso
de contos UNICAMP Ano 40, amigos simpáticos me
perguntam, gentis, pelos outros contos que devo ter
na gaveta. Respondo-lhes — e é verdade — que eu não
tenho outros contos. Nem na gaveta, nem na cabeça.
“Fernando Pessoa, meu caro Watson”, o conto vencedor
do concurso, é filho único, escrito para a ocasião,
com régua e compasso. Escrevi-o com o planejamento
com que se produzem projetos de pesquisa ou anúncios
de jornal. Ou seja, escrevi-o como um texto que
pretende ter efeitos de sentido muito precisos:
conseguir verba de pesquisa, no caso do projeto;
vender um carro, no caso de um anúncio. Concorrer a
um prêmio universitário de literatura, no caso do
conto.
Assim, “Fernando Pessoa, meu caro Watson”, foi
cortado sob medida para o concurso da UNICAMP: o
leitor que ele previa era um júri letrado e culto,
que pudesse, nas maltraçadas de Fátima Soares
Caeiro, gratificar-se, ao reconhecer a herança
ocidental da literatura com ele maiúsculo à qual o
conto faz alusão e da qual se tece.
O prêmio que recebeu faz pensar que a receita deu
certo.
Apresso-me, por isso, a contar a mágica. Professora
de literatura por muitos e muitos anos, jurada de
muitos e muitos concursos, desta vez mudei de lado.
Mas levei para o lado de cá da mesa os óculos do
lado de lá da mesma mesa. Óculos que encavalo no
nariz e nas orelhas para escrever este making of,
espécie de análise literária às avessas.
Começo por duas confissões.
A primeira é que a idéia de inventar viúvas para
escritores célebres me persegue há tempos: cheguei,
inclusive, a planejar uma coleção, Eles por Elas, na
qual grandes autores da literatura em língua
portuguesa seriam apresentados/comentados por suas
respectivas musas e/ou amadas. Tomás Antônio Gonzaga
por Marília, Machado de Assis por Carolina, por aí.
A segunda confissão é que dia 3 ou 4 de agosto do
ano passado, num jantar da ABRALIC, com Maria da
Glória Bordini e Regina Zilberman, no carioca e
antológico La Fiorentina, entre chopes, camarões,
massa e uma sobremesa de banana com queijo, cujo
título homenageava Frei Betto, rimos muito com a
idéia de os heterônimos de Pessoa serem de carne e
osso, terem família e criarem caso com direitos
autorais.
Mas tudo ficou nas risadas. Voltamos para casa, para
as aulas, para a vida real e os heterônimos de
Pessoa continuaram sem receber direitos autorais.
Dias depois, já em São Paulo, prestando atenção aos
eventos de celebração dos 40 anos da UNICAMP, eu me
dei conta de que havia um concurso para ensaios e
para contos. Decidi concorrer com um ensaio. Os
muitos anos de janela em uma universidade pública me
faziam acreditar que eu poderia contribuir com
idéias para discutir universidades públicas,
particularmente na área das humanas, mais
particularmente ainda na área de letras.
Mas, se eu tinha idéias, o gênero ensaio não me
entusiasmava.
Foram muitos os começos, que não passavam dos
primeiros e pífios parágrafos. Mas a idéia de
concorrer continuava a me atrair. Se inscrever-me em
um concurso já era novidade para quem, como eu,
sempre foi júri e foi banca, por que não virar de
vez a mesa e concorrer com um conto? Anonimato
garantido, um polpudo prêmio de 7 mil reais (quantia
maior do que direitos autorais de qualquer obra
acadêmica...), o que mais eu poderia querer?
Lembrei-me da conversa carioca com Glória e Regina.
E fui buscar os heterônimos que haviam ficado na
praia carioca.
Há muitos anos não dou aulas de literatura
portuguesa. Comecei o projeto trazendo para o lado
do computador a surrada obra completa (que hoje,
aliás, é incompleta) editada pela Aguilar, comprada
com um dos primeiros salários de professora de
cursinho. O livro de capa dura veio junto com o
resto da cerveja: era domingo de noite, e a pizza
familiar já tinha rolado.
Primeira tarefa: ler a (digamos) biografia de
Alberto Caeiro. Curtinha e nada excitante. Mas me
forneceu algumas datas para balizar a história. Os
dados, em forma de tabela, inauguraram uma pasta
chamada Caeiro. Segunda tarefa, ler todo o Caeiro.
Todo, todinho, sem pular nada. Ler inclusive as
notas de rodapé. E sofri com a leitura, como quem,
visitando a casa em que morou na infância, descobre
que ela era feia, pequena e suja. Aquela metafísica
prosaica não me entusiasmava. Era um conjunto de
clichês. Pessoanos, mas clichês. Trechos que, quando
eu tinha 20 anos, me tiravam o fôlego e me deixavam
de olho fincado no infinito, naquele domingo de
noite não funcionaram. Mudou o poeta ou mudei eu? —
perguntaram-se meus incorrigíveis botões de
professora habituada a citar a torto e a direito...
Mas a hora não era de citações. Era, isso sim, hora
de uma leitura pragmática, com o objetivo de pinçar,
nos poemas, versos com verbos de ação, que pudessem
dar corpo a um enredo.
Selecionei dezenas de versos. Copiei-os
aplicadamente em outro arquivo da pasta que já
continha a tábua cronológica que montei com os dados
biográficos de mestre Caeiro. Pronto, a lição de
casa estava começada. Faltava agora inventar a
história. Achei que ia ser fácil, mas logo vi que
apenas juntar os fragmentos selecionados não dava
certo. Ficava muito sem pé nem cabeça.
Lembrei-me do jantar no Fiorentina e inventei que o
defunto Caeiro tinha sido casado. Decidi que meu
conto seria um texto em primeira pessoa, como se a
viúva estivesse falando, identificando-se como viúva
de Caeiro logo na abertura. Eu precisava, então, de
um nome feminino para batizá-la. Pensei em Regina,
pensei em Maria, mas achei que Fátima tinha mais
força (Por que era proparoxítona? Por que era uma
das denominações de Nossa Senhora? Por que eu tive
uma vizinha portuguesa chamada Fátima? Vai
saber...). Ficou Fátima. Sapequei um Soares como
nome de solteira, e lá estava minha narradora em
primeira pessoa, com nome e sobrenome. Se eu tivesse
de descrevê-la, escreveria que ela era gorda, vestia
roupa cor de vinho, tinha o rosto muito enrugado e
uma mancha escura no queixo. De seu olho esquerdo,
de vez em quando escorriam lágrimas que ela enxugava
com um lencinho muito amassado.
Eu já tinha a personagem, já tinha um nome para ela,
já tinha células narrativas. Mas eu tinha sobretudo
problemas. Tinha muitos problemas, e de ordens
variadas. A frase “Chamo-me Fátima Soares Caeiro”
ficou empacada na tela e na minha cabeça. Nenhuma
história deslanchava.
Como Fátima falaria? Que língua portuguesa soaria
como português europeu falado por uma camponesa do
início do século vinte sem parecer paródia? Eu
queria, a todo transe, evitar a paródia, a ironia.
Fui dar uma espiada em Camilo Castelo Branco,
leitura meio em diagonal para sentir o tom. Também
dei uma espiada na Juliana de Eça de Queirós. Achei
que tinha encontrado minhas matrizes. E comecei a
montar, pela boca de Fátima, um fragmento de
história possível de ser construído a partir dos
versos selecionados do livro de Pessoa.
A história começou a esboçar-se.
A primeira imagem em que me detive foi a do carro de
bois pela estrada. No original: “Quem me dera que a
minha vida fosse um carro de bois / Que vem a chiar,
manhãzinha cedo, pela estrada”. De onde vinha e para
onde ia o tal carro? O que levava? Empaquei. Minha
Fátima não guiava um carro de bois. Tampouco viajava
nele. Mas ele fazia parte da história que ela
contava. Contava a quem? A história que começava a
esboçar-se precisava ser contada a alguém... Claro
que Guimarães Rosa deu a palavra a Riobaldo sem se
preocupar muito em explicar de quem se tratava
aquele indivíduo que com o caderno na mão ia ouvindo
as histórias. Mas nem eu era Guimarães Rosa, nem a
minha Fátima era mulher de falar ao léu. Eu
precisava inventar um interlocutor para ela. E
inventei um notário, torcendo para que nenhum jurado
desclassificasse meu conto argumentando que não
havia notários em Portugal. Afinal, um protonotário
(apostólico!) comparece ao Dom Casmurro num contexto
totalmente diferente e eu não tinha tempo de ir
atrás da questão. Mas gostava da palavra. Para me
resguardar, pus na boca da Fátima uma frase que
creditava à falta de cultura letrada dela a eventual
impropriedade do termo. Continuo sem saber se
notário é mesmo a designação do interlocutor a quem
a viúva prestou testemunho. Mas, ao menos para
efeitos ficcionais, ficou sendo.
Decidir que Fátima era jejuna de cultura letrada e
que se tratava de um depoimento também me pareceu
resolver a estrutura do texto. Ele podia ficar meio
descosido, sem nexos muito fortes entre um segmento
e outro. Tratando-se de um texto puxado pela
memória, achei que seria possível aproveitar grande
número dos versos que tão aplicadamente eu havia
copiado na leitura de Caeiro. Fátima seria
protagonista de um fluxo de consciência (e eu, que
quando analisava textos, nunca tinha pensado que
stream of consciousness podia ser muleta preciosa
para escribas incapazes de amarrar um fato atrás do
outro...!).
Outro problema era decidir o que teria levado Fátima
a prestar depoimento. Ela foi chamada a depor, ou
foi depor de livre e espontânea vontade? Que
antecedentes justificariam uma ou outra situação?
Talvez levada por meu interesse em questões de
direitos autorais e de profissionalização do
escritor, pensei numa portuguesa muito brava, sem
papas na língua, defendendo seus direitos. O perfil
briguento da Juliana de Eça me assoprava coisas nos
ouvidos. Fátima reclamava dinheiro? Caeiro teria
sido um poeta de província plagiado por Pessoa?
Interessada academicamente em modos de construção de
autoria e na história da profissionalização do
escritor no mundo da língua portuguesa, a hipótese
de uma briga por direitos autorais era sedutora.
Muito sedutora, quase irresistível. Acalentei-a um
bocado, e diverti-me deveras redigindo
pseudocontratos. Que pesquisador não gostaria de
encontrar um documento que provasse, por exemplo,
que foi Dona Carolina que escreveu Dom Casmurro, e
que a capciosa questão do adultério de Capitu foi
ardilosamente enxertada na narrativa por Machado de
Assis numa quinzena em que, acamada, Carolina — a
“querida ao pé do leito derradeiro” — pediu que o
marido passasse a limpo os originais...? Entendi num
relance as vantagens da ficção sobre a pesquisa: o
que não se encontra se inventa...
Continuava gostando da idéia de uma Fátima brigando
por seus direitos, mas acabei abandonando a idéia:
interesses pecuniários são um deslustre no mundo das
letras e eu queria que Fátima fosse uma personagem
acima de qualquer suspeita. Afinal, eu precisava que
o júri a considerasse, além de verossímil,
envolvente. Creio que solidariedade com uma
personagem é um bom começo para amarrar leitores; e
jurados de concursos literários são, afinal de
contas, leitores.
Fátima assumiu, então, perfil desinteressado. Sua
fala serviria a uma causa nobre. E qual seria essa
causa? Não seria nobre lutar pelo reconhecimento de
Alberto Caeiro como pessoa física, e não persona
pessoana? Diverti-me com esse último trocadilho,
através do qual dezenas de pesquisadores articulam o
sobrenome do poeta à criação de seus heterônimos.
Mas eu não queria trocadilhos.
Cheguei a planejar um neto universitário para dona
Fátima: ele seria autor de um trabalho de final de
curso que apresentava Fernando Pessoa como
plagiarista. Seu trabalho teria sido reprovado em
Coimbra ou no Brasil (através de um programa de
intercâmbio) e por isso ele convenceu a avó a
prestar o depoimento que denunciaria o poeta.
Iniciei a história. Mas ficou muito difícil
conciliar a narração de uma vingança acadêmica com a
narração despojada de um narrador-mulher-camponesa
para a qual a vida não tinha complicações letradas.
O texto ficou péssimo. Não consegui fazer a história
sair da miudagem de um diz-que-diz-que
universitário. Desisti do neto universitário. Além
de tudo, mexer com a universidade era navegar muito
próximo ao mundo do concurso. Bordejava a paródia, o
que eu queria evitar a qualquer custo. O resultado
foi o neto recuar para o fundo da cena, relegado à
função de acompanhante da avó idosa nos lindes da
burocracia.
Eu já tinha as grandes linhas do conto prontas. Mas
faltavam as pequenas. E fui descobrindo que estas é
que são as mais danadas.
Quase nunca os versos selecionados combinavam entre
si. Nem todos tinham a mesma força. Nem a narrativa
de Fátima estava conseguindo lhes dar sentido.
Recomecei várias vezes. Não perdia de vista que o
verso talvez mais emblemático de Caeiro é o que abre
“O guardador de rebanhos”. No original, “Eu nunca
guardei rebanhos / Mas é como se os guardasse”. Era,
pois, a partir dessa negatividade (oh! os
frankfurtianos...) que eu precisava construir um
Caeiro através de Fátima. Tinha de transformar essa
enigmática expressão em pedaço da história. Em que
situação faria sentido alguém dizer isso? Mas, se
não era Caeiro que falava na minha história, como
trazer os rebanhos que ele não guardava para a boca
da viúva? Havia mulheres pastoras? Eu nunca tinha
lido sobre nenhuma depois das eventuais pastorinhas
das cantigas trovadorescas, salvo a desenxabida
Guita de As pupilas do senhor reitor.
O verso ficava esquisito em terceira pessoa: “ele
nunca guardou rebanhos, mas é (era?) como se os
guardasse”. Não dava certo. Recapitulei meu plano:
eu queria uma história que, fazendo o leitor erudito
— por hipótese, meu júri — reconhecer os fragmentos
pessoanos, construísse para o texto final um
significado completamente inesperado. O resultado da
leitura precisava atrair as simpatias do leitor para
o casal Caeiro e, por tabela, para o texto que,
inventando a mulher, reinventava o marido.
E que melhor ingrediente para atrair simpatias do
que transformar Alberto Caeiro em vítima? Vítima de
quê? Ou de quem? De novo eu pisava em ovos. Tempos
de neoliberalismo, nada panfletário serviria.
Afinal, o realismo socialista não mais floresce em
currículos universitários. A não entender o
pastoreio como forma metafísica de dizer alguma
(outra) coisa, meu conto precisava dar a Caeiro uma
profissão em face da qual o pastoreio se lhe
afigurasse como paradisíaco. Inventei a história de
quebrar pedras, um pouco —talvez — lembrada daquele
Jerônimo, imigrante português que, no romance O
cortiço, quebra pedras na pedreira de João Romão.
Transportei a cena para Portugal, mas, ao contrário
do que sucedera com Piedade, nenhuma Rita Baiana
poderia cruzar o caminho de Alberto: não fosse ele
perder sua aura... e não fosse a minha Fátima
perdê-lo!
A decisão de fazê-lo quebrar pedras foi boa.
Tratava-se de uma tarefa pesada, bruta, que poderia
fazer-lhe mal, deixá-lo meio de miolo mole. Adorei a
idéia de apresentar toda a versalhada em que minha
juventude tanto se comprazia como sintoma de
distúrbio mental. Uau! Mas, de novo, eu precisava ir
devagarinho. Com sutileza e nas entrelinhas. Não
fosse a irreverência assustar meus leitores. Afinal,
Pessoa é um ai-jesus das letras lusófonas e a
desconstrução talvez não seja um esporte muito
apreciado para além dos rarefeitos ambientes da
teoria literária pós-moderna.
Baixei a bola. E tomei uma decisão: o sólido senso
comum da viúva é que, por contraste, iluminaria o
nonsense não-intencional de Caeiro.
Eu tinha a minha chave.
Fui, a partir daí, pondo palavras na boca de Fátima.
Com todo o cuidado e com um bocado de trabalho
braçal. Usei fontes de cores diferentes para não
confundir citações nem repetir fragmentos.
Intercalei os versos com alguns vocativos, para meu
leitor não se esquecer de que se tratava de um
depoimento. Não fosse minha Fátima pisar na bola e
entornar o leite...
Mas ela foi irrepreensível, dócil a tudo que eu a
fazia dizer...
Eu havia selecionado mais versos do que estava sendo
capaz de aproveitar. Depois de ter um esqueleto de
história, deletei-os para resistir à tentação.
Inutilia truncat, ensinavam os antigos, e sempre é
bom levá-los a sério.
Voltei à obra completa para ler sobre Pessoa, pois
ainda faltava patrocinar o encontro de Pessoa com
Caeiro. A presença de um heterônimo nobre, o Barão
de Teive, ajudou a compor o contexto: sugeriu um
ambiente aristocrático, e me deu a idéia de uma
personagem mimada e tola, um filho do barão, meio no
modelo daqueles intelectuais desocupados e
desiludidos de Eça de Queirós. Ficaria verossímil?
Achei que sim. Seria através desse filho do barão
que Pessoa encontraria um Caeiro já doente, em
encontros testemunhados por Fátima. No mesmo volume
da obra completa de Pessoa, aprendi as peças que
Pessoa pregava nos amigos, inventando histórias que
davam verossimilhança a seus heterônimos. Resolvi
aplicar a ele o tratamento que ele dispensava aos
outros. E o fiz beber vinho e comer figos enquanto
anotava as sandices de Caeiro.
E tenho de dizer que o vinho e os figos foram um
problema.
Eu queria que os visitantes de Caeiro comessem
alguma coisa enquanto transcreviam o que o
matusquela engrolava. Mas o que comeriam moços finos
na casa de um humilde camponês? Pensei em pão, mas
não conseguia imaginar a malta de peralvilhos
escrevendo e mastigando pedaços de pão. E se fosse
pão com azeite? Ou Fátima teria presunto em casa?
Devia ter, mas presunto precisava de faca. Pensei em
uvas, mas a cena, em minha cabeça, começou a parecer
bacanal romana. Deixei as uvas para o carro de bois.
Acabei servindo-lhes vinho com figos, embora tenha
de confessar que não acho que seja a melhor
combinação, gastronomicamente falando. Mas compunha
uma cena portuguesa com certeza: sempre me fascinou
a história que Teófilo Braga recolheu, que conta dos
passarinhos que picavam os figos que a madrasta
malvada mandava a pobre menininha olhar. E vinho, é
claro, comparecia com propriedade, afinal Fátima
trabalhava nas vindimas. Por um tempinho pensei em
embebedar Caeiro: os rapazes lhe davam vinho e,
quanto mais vinho lhe davam, mais rebanhos lhe
apareciam ao lado? Mas achei que um Caeiro bêbado
teria menos cacife do que um Caeiro sóbrio porém
aluado. Poderia também embebedar Pessoa, sendo o
álcool um álibi para o roubo dos textos, afinal, não
era ele que fazia a apologia do ópio? Mas fui
incapaz de inscrever esse dado na história, e decidi
que era melhor que ninguém se embebedasse.
Eu já tinha a história quase pronta. Aí, de estalo,
me ocorreu escurecer Caeiro. Pensei nisso a
propósito do verso “Meu olhar azul como o céu”. Um
Caeiro preto, negro, vindo das colônias. Adorei a
idéia... Consultei a família. Foram contra. Acharam
que era forçar a barra. Que, em tempos de inclusão
social e do politicamente correto, um heterônimo
africano era pura apelação. Meditei com meus botões.
Costumo levar a sério palpites alheios, sobretudo de
estrangeiros ao mundo das letras como é a
lajolândia, constituída por médicas e bioquímicos.
Mas dessa vez meus botões não estavam convencidos da
pertinência do palpite. Para um poeta sabidamente
desatento de questões políticas, como foi Fernando
Pessoa, empurrar-lhe a negritude de Caeiro pela
garganta abaixo era muito divertido.
Deixei a questão para resolver depois.
Eu ainda tinha outro problema, precisava de uma
moldura para a história. A velha idéia do manuscrito
encontrado em alfarrabistas sempre me seduziu, lição
maior de Cervantes, Cid Hamete Benengeli e
Avellaneda. Ou as cartas que emolduram os romances
de José de Alencar. Mas também me seduz um tipo de
romance contemporâneo que faz da Academia —
particularmente dos estudos literários — cenário de
contos e romances. Anthony Byatt e David Lodge são
os santos desses meus altares. Quem sabe era por aí?
Substituí o alfarrabista tradicional pelo aluno de
pós-graduação, transformando-se o depoimento de
Fátima num anexo de tese de doutorado. A Fundação
Gulbenkian, citada na vizinhança de uma tese, dava
verossimilhança à moldura, sofisticando a história.
A Internet me forneceu nomes de universidades da
África do Sul, onde Fernando Pessoa havia morado na
infância, e entre seus heterônimos havia um
Alexander Search, cujo sobrenome era sob medida.
Faltava um título para a tese: The construction of
autorship in 20th century Portugal, ou The building
of authorship in 20th century Portugal? O
sensacional livro de Martha Woodmansee resolveu a
questão, e o título da tese de Mr. Search, PhD,
ficou sendo uma brincadeira comigo mesma, e uma
silenciosa homenagem às companheiras do jantar onde
havia nascido a idéia de dar uma vida doméstica aos
heterônimos pessoanos.
Faltava um título para o conto. Pensei em
“Elementar, meu caro Watson”, frase com que Sherlock
deixa embasbacados seus leitores, à custa de seu
elementaríssimo parceiro, mais leso que o meu
Caeiro. Li o conto recém-batizado para a família. O
título foi vetado. “Elementar demais”, disse uma
filha. “Nada a ver”, disse a outra. O consorte veio
com a solução que batizou a versão final do conto.
Parodiando o clichê do romance policial, pareceu-me
que a presença do nome do poeta português lado a
lado com o ajudante de Sherlock Holmes já instruía o
leitor quanto ao sentido de leitura pretendido.
Deixei o texto dormir uns dois dias. Reli. E reli e
mexi e reli e cortei e re-escrevi. “Trabalha e teima
e lima e sofre e sua”, era verdade o verso de Bilac!
Mantive a negritude de Caeiro. Dei nome ao neto:
Bernardo é um nome forte. Depois de mais leituras,
decidi aumentar a família de Caeiro. Matei um filho
de Fátima nas guerras coloniais e outro nas mãos da
PIDE. A família achou militância demais. Aí tirei a
PIDE de cena e matei os dois filhos nas guerras
coloniais. E achei que estava pronto.
Revi digitação: meus alunos sempre disseram que
costumo deixar muitos espaços entre as palavras
quando digito, e que por isso eles sempre sabiam
quando um texto era digitado por mim. Oooops...
precisava tomar cuidado com isso. Deletei espaços
extras, formatei o texto seguindo as instruções do
regimento do concurso. Inseri cabeçalho com o número
das páginas, o nome do conto e o pseudônimo: não
fossem as páginas se embaralharem e a fala de minha
Fátima ficar ainda mais descosida...
Escolha de pseudônimo, compra de envelope, ida ao
correio ficam fora do making of. Mas fazem parte do
happy end que, como em toda boa história
tradicional, deixou a Fátima e a mim mesma (e talvez
até ao notário...) felizes para sempre! Felicidade,
dizem, não tem história. Mas esta talvez venha a ter
e seja narrada, qualquer dia desses, em um texto que
talvez venha a chamar-se “The day after de ‘Fernando
Pessoa, meu caro Watson’” (ou “O respeitável público
de um conto”).
Marisa
Lajolo
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Bacharelou-se e licenciou-se em Letras pela
Universidade de São Paulo (1967), onde também
concluiu Mestrado (Letras, Teoria Literária e
Literatura Comparada, 1975) e doutorado em ( Letras
Teoria Literária e Literatura Comparada, 1980) sob
orientação de Antonio Candido. Fez pós Doutorado na
Brown University e vários estágios de pesquisa na
Biblioteca Nacional de Lisboa, na Biblioteca Saint
Genevieve (Paris) e na John Carter Brown Library.
Atualmente é professora da Universidade
Presbiteriana Mackenzie e mantém vínculo como
professor colaborador voluntário com a Universidade
Estadual de Campinas. Suas atuais linhas de pesquisa
recobrem interesse por Teoria Literária e Literatura
Brasileira, atuando principalmente nas áreas de
história da leitura, literatura infantil e/ou
juvenil e Monteiro Lobato.
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