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A telenovela está no jornal, nas conversas,
nos blogs, nos sites, seus capítulos estão
antecipados nos jornais do fim de semana.
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TELENOVELA - A NARRATIVA BRASILEIRA
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Entrevista com Maria
Immacolata Vassallo de Lopes
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FONTE:
Pesquisa FAPESP
Um gênero consumido e
apreciado por milhões de brasileiros. Por isso
mesmo, um gênero a ser conhecido pelos professores.
LINHA MESTRA reproduz aqui a entrevista com Maria
Immacolata Vassallo de Lopes, conduzida por Mariluce
Moura - Agência FAPESP.
Você
é uma pioneira nos estudos acadêmicos da telenovela
aqui no Brasil. Eu queria ouvi-la, primeiro, sobre o
começo: como a telenovela se tornou seu objeto
central de pesquisa?
No começo dos anos 1990 José Marques de Melo, então
diretor da ECA, organizou um programa de estudos de
ponta, cobrindo vários temas pouco usuais como
objeto de pesquisa. Um deles era a telenovela, outro
eram os quadrinhos etc. E aí se formou um grupo, um
núcleo inicialmente liderado pela Ana Maria Fadul. A
questão passava a ser organizar essa equipe, porque
estávamos com um produto importantíssimo para o
país, em termos culturais e em termos de
comunicação, mas a legitimação e o reconhecimento de
um novo objeto de estudo na academia são sempre
difíceis. Aos poucos, foram se gestando os projetos
de pesquisa dos professores e dos estudantes, nossos
orientandos de mestrado e doutorado. Já hoje temos
certamente um número fantástico de trabalhos de
conclusão de curso na graduação sobre a ficção na
televisão, o que inclui telenovelas, minisséries,
séries etc.
Isso começou por qual departamento da ECA?
Pelo CCA, o Departamento de Comunicações e Artes,
ligado à teoria da comunicação. Havia uma intenção
de interdisciplinaridade na abordagem da telenovela.
Importava a questão mesmo da telenovela no Brasil,
quer dizer, esse produto que vem da televisão e o
que é a televisão dentro da sociedade brasileira.
Quando a coordenação do núcleo já estava com Maria
Aparecida Baccega, entramos em 1995 com um projeto
temático na FAPESP, que resultou em nove
subprojetos. Coube a mim, dentro disso, fazer um
estudo de recepção da telenovela [“Recepção da
telenovela brasileira: uma exploração
metodológica”]. Mas havia uma colega, Solange
Couceiro, que estudava a questão das relações
raciais na telenovela, outra, a questão do consumo,
a Renata Pallottini, a questão da escrita, a
Lurdinha, Maria de Lourdes Motter – infelizmente
falecida precocemente –, estudava a relação entre
realidade e ficção etc. Tudo isso gerou livros e
todo um processo muito interessante para a
vitalidade desse núcleo. Havia um outro aspecto de
nosso trabalho que era a interface com os produtores
e com o mercado, e a maioria das teses e
dissertações, nesse caso, incidia sobre produtos da
Globo. Natural, porque foi ela que tornou a
telenovela um produto profissionalmente rentável,
com qualidade estética, qualidade técnica. Mas o
fato é que o grupo precisava fazer gestões de
relações com o mercado, porque, se a telenovela
provocava desconfiança na academia, nossos estudos
provocavam uma desconfiança dos produtores, que
imaginavam que íamos começar a falar de uma forma
frankfurtiana em alienação, algo na base do “é
manipulação o que vocês fazem”, essas coisas. Mas as
coisas começaram a andar desse outro lado graças aos
seminários para os quais convidávamos os produtores,
principalmente os autores de telenovela, entre eles
Lauro César Muniz, Silvio de Abreu, Maria Adelaide
Amaral e Glória Perez. Eles se misturavam aos
acadêmicos e disso resultavam trabalhos muito
interessantes.
Especificamente em seu estudo de recepção da
telenovela, quais foram os achados principais?
Bem, havia um desafio teórico-metodológico, mas
fundamentalmente metodológico no estudo, ligado à
questão da teoria das mediações. Esse é um tema de
larga influência na área de comunicação através de
Jesus Martín-Barbero. Tínhamos então que fazer a
pesquisa tomando como marco teórico a questão das
mediações e definir como trabalhar essa teoria em
termos metodológicos. Não era simples e por isso eu
insistia tanto junto à FAPESP que o projeto era
realmente uma experiência metodológica numa pesquisa
empírica.
Em termos mais práticos, quem você entrevistou?
Como definiu sua amostra?
Nas Humanas é frequente o estudo de caso, e a
idéia era essa, pesquisar a recepção da telenovela
no âmbito de um estudo de caso. Mas chegamos a um
universo, nem tão pequeno assim, de quatro famílias
de condições sociais diferentes, desde uma que vivia
numa favela até uma de classe média alta de um
condomínio do Morumbi. As outras duas eram uma
família de periferia e uma de classe média. Íamos
acompanhá-las assistindo a uma mesma novela...
Qual novela?
A Indomada, que estava no ar naquele momento. A
estratégia envolvia estar oito meses na casa das
famílias, fazendo uma observação etnográfica e, ao
mesmo tempo, estudando o acompanhamento da novela,
ou seja, a recepção do produto. E isso envolveu um
protocolo metodológico ambicioso, porque o trabalho
tinha que ser feito por uma equipe multidisciplinar,
com pessoal sênior de psicologia, de antropologia,
de comunicação, de sociologia, e mais um grupo de
orientandos e até estudantes na iniciação científica
– 14 pessoas no momento de mais intensidade do
trabalho. Foram três anos de pesquisa, um ano só
para afinar a equipe, coisa essencial porque íamos
entrar na casa das pessoas, em média, duas vezes por
semana. Ficamos oito meses com essas famílias, do
começo ao final da novela. Nosso compromisso
explícito era sair a qualquer momento, se
estivéssemos atrapalhando a vida da família. E
nenhuma das quatro propôs isso.
Em termos práticos, como vocês faziam?
Chegava uma dupla principalmente no horário da
novela, mas não só. Porque, como dentro da pesquisa
era importante observar o que chamamos de cultura da
família, precisávamos ver como as coisas funcionavam
na parte da manhã, à tarde, como a televisão era
ligada, quando, o que faziam, enfim, toda essa
questão do cenário porque a televisão é um aparelho
familiar e tudo isso faz parte daquilo que chamamos
de observação etnográfica. Interessava essas
pessoas, suas histórias de vida, como começou o
interesse por telenovela etc. E tudo isso permitiu
ver na prática que a telenovela é mesmo uma
narrativa popular, com as marcas de reconhecimento,
mais do que de identificação, como dizem Jesus
Martín-Barbero e outros. Em outros termos, as
pessoas se reconhecem naquela narrativa popular. Tem
que ser um melodrama para ser recebida como
telenovela, mas, de fato, ela passou a falar também
sobre a realidade brasileira.
Esse reconhecimento é algo visível ou mensurável?
É observável e, na medida em que a telenovela é
uma narrativa da família, e não dos indivíduos, é
mais consequente fazer da família a unidade da
investigação. A telenovela busca sempre os temas
privados, as paixões, o ódio, a origem das pessoas,
sempre ambientados nas famílias. Esse é o cenário, o
paradigma. E quem assiste em casa é uma família real
que se reconhece em parte nas famílias da ficção.
A família como ambiente é a manutenção do padrão
tradicionalíssimo do folhetim. Por que na ficção
televisiva se mantém esse mesmo padrão de séculos?
Porque é a matriz do melodrama, a mesma que o
folhetim pegou. O que é essa matriz? Trata-se da
centralidade da pessoa na família, esse espaço
privado onde as coisas mais inacreditáveis que se
possa imaginar têm chance de acontecer. A telenovela
vai para a política, para outras instâncias da
realidade, mas é o comportamento, são as questões
morais que, mesmo aí, mais chamam a atenção, e tudo
isso está investido dessa matriz. E o reconhecimento
acontece porque todo mundo se vê numa família. Até
que os estruturalistas mostraram isso muito bem,
quer dizer, como é que essas famílias vão entrar em
conflito ou em associação e todas as tramas daí
decorrentes, com suas muitas interações.
Há autores melhores e piores nesse cruzamento das
tramas. Para você, quem é o mestre?
Acho Manoel Carlos fabuloso nesse sentido. Sabe
por quê? Pela quantidade de tramas com que ele é
capaz de lidar simultaneamente, e várias assumindo
tal importância, como em Mulheres apaixonadas [Rede
Globo, 17/02 a 10/10/2003], que se torna difícil
definir quem é o protagonista. Às vezes, uma trama
inicialmente pensada como secundária assoma à
posição principal, e vice-versa.
Mas isso decorre da interação com o público, não?
Já que se trata de uma narrativa na qual nos
reconhecemos, o público vai mostrando, no movimento
mesmo da recepção, em que grupo se reconhece, com
que personagens tem mais empatia etc.
Sim, os produtores têm “n” maneiras de medir, de
captar isso, desde sua própria sensibilidade até as
enquetes. E o interessante é que o público termina
se alfabetizando nisso que chamamos a gramática
dessa narrativa. Já não vemos só o making-of dos
filmes de Hollywood, mas de toda a produção da
televisão brasileira. Os bastidores não só são
escancarados pela mídia, mas os próprios autores
revelam a sua maneira de trabalhar. Então, o Manoel
Carlos conta: “Vou ao jornaleiro, vou à pizzaria e
vou no meu bar e começo a ouvir etc...”. E aí as
pessoas já sabem: “Lá vem o Manoel Carlos, olha, seu
Manoel, ontem à noite, aquela cena foi fantástica
etc.”. Essa interação já se estabeleceu. O último
que inovou nisso foi o Aguinaldo Silva, ao criar um
blog enquanto estava escrevendo Duas caras [Rede
Globo, 01/10/2007 a 31/05/2008]. Tiago Santiago
também resolveu fazer isso em relação à novela da
Record, Os mutantes: caminhos do coração.
Aliás,
só para pegar algo bem atual da dramaturgia
televisiva, como você avalia na novela A favorita a
grande virada que transformou a personagem de
Patrícia Pilar numa vilã monstruosa?
Em meu entendimento, A favorita combinou traços do
dramalhão clássico – vingança, ciúme, segredo – com
inovações, por exemplo, revelar no segundo ou
terceiro mês da história quem era a malvada e quem
era a boazinha, invertendo completamente o que o
público tinha sido levado a pensar até então.
Roteiro ousado esse do João Emanuel Carneiro.
Funcionou às mil maravilhas, tornando o tipo meigo e
confiável de Patrícia Pilar em mais que uma vilã
tradicional, em uma verdadeira serial killer,
chegando ao paroxismo do ódio à própria filha etc.
Aliás, se você reparar bem, essa novela é uma grande
história sobre “as aparências enganam”: ninguém, ou
quase ninguém, é o que parece. O público respondeu
bem e a novela está numa audiência ascendente, de
quase 50 pontos.
Durante a pesquisa tornava-se mais perceptível
que o sentimento de reconhecer-se, por parte do
receptor da novela, tem o poder de influenciar de
alguma forma o desdobramento da história.
Não era isso o mais importante a observar ali. Sem
dúvida alguma o público receptor influencia, e isso
aparece nas mais variadas ordens, desde a mídia
falando da telenovela, fala a que os produtores
estão muito atentos, aos grupos qualitativos que a
própria emissora organiza, enfim, existe toda uma
sistemática, toda uma metodologia para captar os
humores do público em relação à telenovela. Mas a
coisa mais importante para nossos estudos, creio, é
a espontaneidade que se verifica, é alguém no
Congresso Nacional, por exemplo, ao falar de algo
significativo, se referir de repente a uma novela,
aí se percebe sua dimensão cultural, vê-se o lugar
que ocupa. E agora, com a internet, com os blogs,
com os grupos para matar uma personagem e enaltecer
outra, “odeio o autor xis” ou “adoro o autor xis”,
parece que se reocupa de uma outra forma os velhos
clubes de fãs ou fã-clubes. E isso nos permite dizer
que, em termos sociais, continuamos com uma relação
extremamente vital com a telenovela. Queria
justamente falar um pouco sobre como hoje nós
estamos focalizando o receptor, a recepção nos
estudos de comunicação.
E como é isso?
Já não o vemos como um ponto final num processo
de comunicação que começa com a emissão. E de tal
modo isso se transformou que há quem diga que é com
a recepção que o processo começa, porque lá vão se
criar novos sentidos. Ou, como dizemos, há uma
ressignificação. Todos não assistem da mesma
maneira, recortam-se conteúdos. Você pode ver uma
família na favela assistindo o mesmo produto da
classe média alta, mas a primeira coisa é que não é
a mesma recepção. A beleza da coisa é que possamos
dizer: “Está dando audiência, sim, mas os
significados, os motivos são os mais variados”. E
quase todos os motivos estão implicados na
experiência das pessoas, na vida, no cotidiano, na
cultura das pessoas. Que são diferenciadas numa
sociedade tão desigual como a brasileira.
Então, longe de ser simples, este é um produto
sujeito a muitas leituras e ressignificações.
Pronto, é isso. Muitas leituras, infinitas leituras.
Portanto, quando se cruza esse caráter com a questão
das marcas do reconhecimento – porque se trata de
uma narrativa popular, no sentido de que não é
hermética, não é a de um romance –, torna-se clara a
literacidade da novela. Quer dizer, a gramática
passa a ser aprendida, inclusive vem a crítica,
“essa cena está malfeita”, “a maneira de falar de
fulano está errada” etc.
Uma crítica referida à estética.
Estética, técnica... às vezes críticas realmente
surpreendentes, em especial quando se vai descendo
na escala social. Uma curiosidade: das quatro
famílias com que trabalhamos, aquela que mais se
aproximava de um tipo ideal de família não era a da
favela, nem a que classificamos na classe média
tradicional, nem a da classe média alta, mas a da
periferia. Poderíamos dizer que era uma família de
classe média baixa. Tinha determinados equipamentos
dentro de casa, os filhos estudavam, diferentemente
do que acontecia com a primeira família, cujas
filhas adolescentes vendiam produtos nos
semáforos... O pai nessa família da periferia tinha
sido vendedor de peixe na feira e no momento era
vendedor ambulante de guloseimas. A mulher fazia um
trabalho social na igreja, e também por isso era
muito crítica do que via na telenovela.
O que é esse tipo ideal?
Falo do ideal do Weber. Quando se tem tipos ideais,
já não se está na ordem da realidade. Quando Weber
fala, por exemplo, do capitalismo, está pensando
principalmente no tipo ideal da racionalidade
capitalista. Vê-se claramente que o corpo do
capitalismo é o da administração, é o da empresa.
Nele, portanto, tudo está controlado em termos de
meios e fins. Mas indo às famílias, nas quatro com
que trabalhamos, que, é claro, não têm nenhuma
representação estatística, víamos em todas elementos
que são propriamente de um modo de vida de classe
média. No entanto, em relação a esse reconhecer-se
na narrativa e em termos da ressignificação,
categorias que tomamos nos estudos de recepção (que
hoje alguns chamam de ativa, para afastar a idéia de
passividade total ante a televisão), esse
reconhecimento realmente se corporificava, se
realizava muito mais, na segunda família, a da
periferia.
Ou seja, essa família era a que tinha a relação
mais direta, mais afetiva – no sentido amplo de
afetivo – e mais interativa com o que se passava lá
na tela. A ponto de “falar” para as personagens o
que deviam fazer.
É isso mesmo. E veja, nós pensamos nessas famílias
sem muitas restrições prévias. Queríamos apenas que
se assistisse telenovela naquela família e que
houvesse disponibilidade de nos receber. Ah, outra
coisa: que não tivesse criança pequena. Não tínhamos
condições de incluir essa categoria. Adolescente,
sim, a partir do momento em que pudesse falar se
sabendo adolescente ou jovem. E foi essa a única
pré-condição em termos da composição familiar. Se a
família tivesse à frente uma mulher viúva, estava
bem. E encontramos uma assim. No diagrama do arranjo
familiar, na da favela, o marido não estava, tinha
abandonado a casa. E a mulher tinha, enfim, sua
própria novela, que era a vida dela. Nesses termos,
a família da periferia era a mais do tipo ideal,
sabe, pai, mãe, filho.
Estavam todos os elementos da composição da
família nuclear.
Sim, tudo bem composto. E tinha o lado da mulher,
era bem interessante lidar com ela ao assistir a
telenovela, porque ali tinha uma personagem feminina
forte.
Que idade tinham os chefes das famílias
escolhidas?
Quase 50. Na família de classe média, ambos estavam
no segundo casamento. Não havia filhos em casa,
porque os filhos dele do primeiro casamento estavam
com a mãe, e o casal ainda não tivera filhos. No
casal da classe média alta, a mulher era até
bastante noveleira, mas o marido, um empresário,
entrava, dizia “boa noite” e ia embora assistir o
vídeo dele em outro lugar. Nunca quis sentar. Ela
assistia sozinha. Dos filhos, o rapaz fazia
pós-graduação e as filhas faziam cursinho. Em termos
de estudos de recepção, era muito instigante tentar
ver como a telenovela entrava naquela casa. As duas
filhas, porque faziam cursinho à noite, assistiam só
nos fins de semana e a mãe contava para elas o que
acontecera nos demais dias. Também era muito
interessante o desafio de estabelecermos eticamente
até onde podíamos ir, até onde podíamos atender às
demandas para comentar certas coisas, como, por
exemplo, a questão da sexualidade dentro da novela,
o que fazia alguma delas começar a falar de suas
próprias experiências. Quero dizer que, se pensarmos
nas pesquisas antropológicas, quando você fica na
tribo tem que se tornar um nativo, obter a confiança
de todos. Mas estávamos lá para falar de telenovela.
E em relação à questão do reconhecimento, da
ressignificação e das diversas leituras, me chamou
muito a atenção que a novela criasse, para além de
todas as diferenças entre os receptores, coisas em
comum, que é aquilo que comecei a chamar de
repertório compartilhado.
Ou seja, na sociedade brasileira você tem, de
fato, algum repertório compartilhado de alto a baixo
dos estratos sociais.
Isso mesmo. Por exemplo, como a família enfrenta a
questão da virgindade e sexualidade das suas filhas.
Que era tratada numa cena de A indomada como uma
relação tipo Romeu e Julieta. Essa novela do
Aguinaldo Silva teve de tudo, do grande drama até a
comédia mais escrachada. E quando eu digo desse
repertório comum, lembro uma cena em que a
personagem da Luíza Tomé, a mulher do prefeito,
representado por Paulo Betti, fala com a filha a
respeito do primeiro ato sexual que ela vai ter. É
fantástico.
Você viu, na recepção nas diferentes famílias,
uma disposição favorável a essa forma?
Sim, favorável. Não só a esta forma, mas à idéia de
que a telenovela devia abordar esse tipo de coisa,
porque é algo que todo mundo passa, porque sempre
tem essa coisa dentro da família. A personagem
estava também falando do cuidado, de se ter sexo
também com um envolvimento amoroso. Dizia: “Você
sabe o que vocês estão fazendo? Vocês estão
preparados?”. Aí ela fala de hormônios, nada de uma
coisa do arco-da-velha, não, um texto muito
contemporâneo. Outro repertório compartilhado era
tratar da questão da política. De novo, recorrendo a
Martín-Barbero: uma pessoa do povo nunca vai
entender o que é a guerra – a guerra é um lugar onde
um tio morreu. A cidade é um lugar onde a prima se
deu bem. Assim, as categorias mentais mais
complicadas chegam às pessoas via afeto. Quer dizer,
há aí uma coisa de cognição que passa claramente por
um sentido emocional. Então, emoção e razão... A
telenovela faz esse duplo movimento para as coisas
chegarem às pessoas: o privado se torna público e o
público se torna privado. E tem que haver isso.
Tomemos a violência, por exemplo. Tem que acontecer
dentro de uma família e daí, numa novela de Manoel
Carlos, que provocou até aquela onda de reação da
violência no Rio, havia uma moça que estava
observando algo e é morta por uma bala perdida. No
Leblon. Era uma personagem importante, e aí era a
inserção de todo aquele drama das balas perdidas na
ficção.
O que está no mundo de fora e não me mobilizava
de repente passa a ter significado pela via do
afeto. Relaciono-me com a violência objetiva pela
via do afeto, facilitada por esses trabalhos
midiáticos.
Exatamente. E você pode dizer até por dispositivos
da narrativa. E aí passamos a falar da narrativa
televisiva que foi se abrasileirando, da telenovela,
que se torna, para mim, um gênero típico, um gênero,
portanto, da televisão, nacional. E cheguei a essa
conclusão através de meus envolvimentos teóricos,
metodológicos, até epistemológicos, e via recepção.
A partir de quando ela se torna um produto
cultural genuinamente brasileiro?
O marco para todos os estudiosos da história da
telenovela é Beto Rockfeller, da TV Tupi, escrita
por Bráulio Pedroso e levada ao ar em 1968. Mas
temos um processo de abrasileiramento, de
naturalização até do próprio ator, do modo de
interpretar e da história. Quer dizer, ela se torna
cada vez mais realista. E não porque o autor perde
de vista que está fazendo uma telenovela, portanto
gênero meio dramático, aquela coisa toda, mas por
exigência do público. Dou um exemplo: num núcleo que
se passa numa redação de jornal, os jornalistas
começam a dizer “mas aquilo ali de forma nenhuma
acontece, é um equívoco”.
Como também reclamam médicos, nutricionistas e
todas as categorias profissionais.
É uma coisa incrível essa capacidade de
mobilização da telenovela e o enraizamento que foi
acontecendo. A isso exatamente me refiro quando falo
de abrasileiramento do gênero. A questão é de que
ele foi se apropriando para se constituir assim. A
cultura brasileira absorvera fotonovela,
radionovela, a maneira de o cinema tratar o país,
então, a telenovela não se realizou nesse sentido de
uma forma isolada, fez uma reapropriação do que já
vinha acontecendo há décadas na cultura. Quando
pensamos sobre isso vamos necessariamente ao rádio
na forma como foi utilizado por Getúlio Vargas nos
anos 1940 e depois entrando pelos 50. Vamos aos
meios de comunicação na sociedade brasileira,
perguntar pelos seus efeitos, pela sua importância,
pela manipulação ou pelo uso de tudo isso. A
televisão, que herdou muita gente do rádio, era
muito cara no começo, inclusive os aparelhos, então
havia a experiência do “televizinho”, ou seja, ela
se punha dentro da rede da comunidade mais próxima.
E a telenovela surge primeiro pela Tupi, sem dúvida
alguma, passa pela Record, pela breve experiência da
Excelsior. Já é longa essa história que chega aos
bons autores que eram dramaturgos, Dias Gomes, Jorge
de Andrade ... E os anos 1970 trazem as novelas
fantásticas que ficaram na cabeça de todo mundo. E
nessa longa vivência a recepção vai se tornando
ativa e crítica, com as pessoas chamando a atenção
para determinadas características e dispositivos,
adiante podendo explicar “olha, aquele episódio
estava malfeito porque a produção teve que correr,
fulano não conseguiu fazer o capítulo de ontem” etc.
E a novela passa a ser o tempo todo um work in
progress...
É, exatamente. Aliás, o meu projeto atual de
pesquisa chama-se “a telenovela como narrativa da
nação”. Mas acho que é importante notar que a
profissionalização da Globo, toda sua capacidade de
produção, se realizou em cima desse gênero. É ela o
marco, claro que isso depois se torna muito
complexo.
Mas a teleficção, e a telenovela em particular, é
o coração da máquina toda, em sua avaliação.
Sem dúvida. O que está no mundo de fora e não me
mobilizava de repente passa a ter significado pela
via do afeto. Relaciono-me com a violência objetiva
pela via do afeto, facilitada por esses trabalhos
midiáticos.
Exatamente. E você pode dizer até por dispositivos
da narrativa. E aí passamos a falar da narrativa
televisiva que foi se abrasileirando, da telenovela,
que se torna, para mim, um gênero típico, um gênero,
portanto, da televisão, nacional. E cheguei a essa
conclusão através de meus envolvimentos teóricos,
metodológicos, até epistemológicos, e via recepção.
A partir de quando ela se torna um produto
cultural genuinamente brasileiro?
O marco para todos os estudiosos da história da
telenovela é Beto Rockfeller, da TV Tupi, escrita
por Bráulio Pedroso e levada ao ar em 1968. Mas
temos um processo de abrasileiramento, de
naturalização até do próprio ator, do modo de
interpretar e da história. Quer dizer, ela se torna
cada vez mais realista. E não porque o autor perde
de vista que está fazendo uma telenovela, portanto
gênero meio dramático, aquela coisa toda, mas por
exigência do público. Dou um exemplo: num núcleo que
se passa numa redação de jornal, os jornalistas
começam a dizer “mas aquilo ali de forma nenhuma
acontece, é um equívoco”.
Como também reclamam médicos, nutricionistas e
todas as categorias profissionais.
É uma coisa incrível essa capacidade de mobilização
da telenovela e o enraizamento que foi acontecendo.
A isso exatamente me refiro quando falo de
abrasileiramento do gênero. A questão é de que ele
foi se apropriando para se constituir assim. A
cultura brasileira absorvera fotonovela,
radionovela, a maneira de o cinema tratar o país,
então, a telenovela não se realizou nesse sentido de
uma forma isolada, fez uma reapropriação do que já
vinha acontecendo há décadas na cultura. Quando
pensamos sobre isso vamos necessariamente ao rádio
na forma como foi utilizado por Getúlio Vargas nos
anos 1940 e depois entrando pelos 50. Vamos aos
meios de comunicação na sociedade brasileira,
perguntar pelos seus efeitos, pela sua importância,
pela manipulação ou pelo uso de tudo isso. A
televisão, que herdou muita gente do rádio, era
muito cara no começo, inclusive os aparelhos, então
havia a experiência do “televizinho”, ou seja, ela
se punha dentro da rede da comunidade mais próxima.
E a telenovela surge primeiro pela Tupi, sem dúvida
alguma, passa pela Record, pela breve experiência da
Excelsior. Já é longa essa história que chega aos
bons autores que eram dramaturgos, Dias Gomes, Jorge
de Andrade ... E os anos 1970 trazem as novelas
fantásticas que ficaram na cabeça de todo mundo. E
nessa longa vivência a recepção vai se tornando
ativa e crítica, com as pessoas chamando a atenção
para determinadas características e dispositivos,
adiante podendo explicar “olha, aquele episódio
estava malfeito porque a produção teve que correr,
fulano não conseguiu fazer o capítulo de ontem” etc.
E a novela passa a ser o tempo todo um work in
progress...
É, exatamente. Aliás, o meu projeto atual de
pesquisa chama-se “a telenovela como narrativa da
nação”. Mas acho que é importante notar que a
profissionalização da Globo, toda sua capacidade de
produção, se realizou em cima desse gênero. É ela o
marco, claro que isso depois se torna muito
complexo.
Mas a teleficção, e a telenovela em particular, é
o coração da máquina toda, em sua avaliação.
Sem dúvida.
Nos anos 1980, numa entrevista que fiz com Manoel
Carlos para a revista Senhor, ele prognosticou o fim
das longas telenovelas que seriam substituídas pelas
minisséries. Entretanto, mais de 20 anos se passaram
e a despeito das sentenças de morte seguimos vendo
novela das sete, novela das nove, novela na Record
etc.
Pois é, o horário de telenovela a rigor começa
na Globo antes das seis, começa com Malhação e vai,
com algumas interrupções para jornal e outros
programas, até as 11 horas da noite ou mais. Uma das
primeiras coisas que o Obitel está fazendo é estudar
a grade da ficção que é própria, que tem a ver com
capacidade produtiva da televisão de cada país.
Nessa grade aqui no Brasil cabem telenovela, série,
minissérie e até microssérie, que é a série de três
ou quatro capítulos que no exterior ninguém conhece.
O que se vê é que da matriz inicial da telenovela
foram nascendo variadas experiências de ficção
televisiva entre nós, em que convivem todas. Creio
que Manoel Carlos assim como Lauro César falavam
tanto no fim da novela, ou pelo menos de se
afastarem da função de escrever novela, porque o
trabalho era muito desgastante. Ainda é, mas um
pouco menos porque os autores começaram a contar com
colaboradores, o que não havia nos anos 1980. Glória
Perez e Gilberto Braga começaram como colaboradores
de Janete Clair. E isso é muito importante, a
produção semanal de uma novela corresponde a fazer
dois filmes e meio por semana! E o trabalho do autor
é muito grande inclusive porque há dispositivos de
naturalização inteiramente dados pelo texto. É como
na cena da mãe falando para a filha sobre
sexualidade a que me referi: o texto é o mecanismo
de naturalização. Uma câmera só acompanha os atores,
em plano fixo, transcorre uma conversa que dura o
tempo que duraria no plano real. E, olha, há o tempo
do telespectador do outro lado, e as barrigas, as
redundâncias têm que ocorrer porque se assiste
televisão, não só telenovela, com passarinho
cantando, cachorro latindo, a filha chamando... Cadê
a atenção que se dispensa a um filme no escuro do
cinema? E então também esta relação, a recepção de
maneira fragmentada, tem que ser pensada na
telenovela. E até a possibilidade de se ficar dez
dias sem assistir e depois ter capacidade de
acompanhar a narrativa. É claro que tudo isso foi
entrando na feição própria da telenovela. Com o
tempo, foi se manejando essa arte, essa técnica, que
continuamos a acompanhar.
Mas
é possível se ter informação sobre os desdobramentos
da novela até no jornal, nos cadernos de tevê etc.
Pronto, aí está o ponto onde eu queria chegar:
todos falam da telenovela. Ela não é só vista, é
falada. E esse conjunto que eu chamo de semiose
social é o que faz ela ser o que é. A telenovela
está no jornal, nas conversas, nos blogs, nos sites,
seus capítulos estão antecipados nos jornais do fim
de semana.
Entretanto, você não tem mais a telenovela
dominando inteiramente a cena geral da televisão
brasileira. Existe a oferta de programas muito
diferentes nos canais da TV paga. Isso não diminui
muito o alcance desse produto tão abrasileirado?
A audiência vem diminuindo em termos relativos faz
tempo. A audiência usual da telenovela nos anos 1970
– não estou falando de share – era de mais de 60
pontos, quase 70 pontos do Ibope. E há o que se diz
de Roque Santeiro, cujo último capítulo teria
alcançado 100% de share. Há, sim, o aumento da
oferta, o aumento de canais, a diversificação, isso
sem falar da internet. E hoje as pessoas deixam de
assistir na televisão o que até gostariam porque são
puxadas pela internet para trabalhar. O trabalho
deixou de existir num só lugar, ele está também na
casa normalmente à noite. Isso antes não existia.
Portanto, temos que compreender também essa mudança
no cotidiano. Mas, olhando em perspectiva, se o
Ibope da telenovela que já foi quase 60 baixou para
50, para 40, tiver que ir para 30, ela continua
hegemônica, em termos de programa assistido. Porque
a hegemonia se dá, sim, pela audiência, sem dúvida,
mas também por impor um padrão.
Nós não podemos terminar essa entrevista sem
falar do Obitel. Como ele começou?
Quando terminei o estudo da recepção, pedi uma bolsa
à FAPESP para um pós--doc na Itália, onde há um
observatório da Fiction, como eles dizem, coordenado
por Milly Buonanno. Era uma coisa proposta já dentro
do marco do audiovisual europeu, o Observatório
Eurofiction. Fui lá fazer ver isso em 2001. Queria
analisar a telenovela brasileira no cenário
internacional. Não podemos nos fechar, temos que
lidar com outras nações para entender nosso
nacional. E, claro, sabemos que existe a marca da
telenovela latino-americana, principalmente
mexicana, da Televisa. E sabemos como ela entra nos
Estados Unidos através da comunidade hispânica.
Quase todos os países têm o gênero de ficção na
televisão. Quer dizer, todo mundo gosta de se ver
nas histórias, nas narrativas, naquilo que fala de
nós. Só que essa narrativa é também uma indústria
cultural movida a capital, movida a mercado e,
portanto, alguns dominam isto, vide o cinema
norte-americano. Nós, aqui no Brasil, na Globo,
mesmo em outras redes, das cinco e meia da tarde até
as dez horas da noite, ou seja, no horário nobre, a
produção que vemos é nacional. Isso significa
mercado de trabalho para atores, para produtores,
autores etc. Isso não é pouco e, se entendermos mais
o que se passa, pode aumentar extraordinariamente.
Estamos longe da era do “enlatado”. O prime time, o
horário nobre, está ocupado por histórias que falam
de nós.
E aí quais foram as suas percepções?
Eu decidi que tinha que precisávamos definir como
nós faríamos um observatório de ficção, qual seria a
logística, depois, qual metodologia para fazer isso.
Um observatório tem que monitorar a produção, a
audiência etc. com dados. Os dados seriam
solicitados ao Ibope, mas nós próprios, dentro do
Núcleo de Telenovela na ECA, teríamos que gerar
outros. O fundamental era construir um sistema de
monitoramento para poder realmente falar do que
acontece e do que não acontece. Eu percebia com
relação à telenovela que estávamos indo muito para
os estudos de caso. Precisamos fazer macroanálises
da ficção televisiva. E até coisas inéditas em
termos de olhar a telenovela: olhar a produção, os
dispositivos, a oferta, a coprodução, os formatos, a
migração de formatos ...
E o observatório já está funcionando aqui no
Brasil?
Sim, desde que voltei da Itália, ainda em 2001,
ainda que o Obitel, com esse nome, tenha sido
formalizado em 2005. Eu já tinha o suporte
institucional e daí o desafio era, com uma equipe,
ambientar, colocar o observatório no Núcleo de
Pesquisa de Telenovela. Depois que passou a se
chamar Obitel, fizemos o convênio com o Ibope, fomos
aprendendo a fazer. Vimos que era possível já propor
esse projeto para colegas da área de comunicação de
outros países que vinham nessa trajetória. A idéia
do Obitel é trabalhar com pesquisa de produção e
circulação entre nós de telenovela, minissérie,
série etc. Em síntese, das ficções televisivas. Mas
não quero que o Obitel Brasil se resuma à equipe da
ECA. Já consegui reunir 38 pesquisadores brasileiros
de telenovela e quero que todos estejam no Obitel
desenvolvendo projetos.
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