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Experiência

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... podemos ver o texto
como um lugar de interação entre autor e leitor,
sendo o leitor um atualizador de significações que
veste o texto conforme sua ótica, experiência, enfim
as lentes de que dispõe para enxergá-lo. |
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PALAVRA E
ENCENAÇÃO: A DESCOBERTA CÊNICO-CORPORAL DO ATO
DE LER
Suzana Cortez
(*)

“Eu leio jornal, coisa assim mais informativa, e
também as leituras que vão ser feitas na
escola... não tenho tempo, nem costumo ler por
prazer.”
“Eu nunca gostei de assistir espetáculo de balé,
nunca tive paciência pra ficar um tempão sentada
na cadeira... mas na verdade eu nunca soube ler
a dança.”
Os depoimentos acima foram proferidos pelas
professoras do ensino fundamental I durante as
aulas do módulo “Palavra e encenação...”, parte
integrante do curso “Ler para Aprender” do
programa de formação continuada Teia do Saber
2007. Essas afirmações são reveladoras de um
certo desalento com que a leitura, de um modo
geral, é vivenciada pelo professor e encarada na
escola com seus alunos. Longe de se tornarem
instrumentos de um diagnóstico pessimista sobre
a leitura na escola, os depoimentos das
professoras apontam para o que pode e deve ser
feito nas atividades de leitura, em comunhão com
seus alunos, grandes parceiros de sua prática e
atuação.
Nesse sentido, pretendo aqui promover uma
reflexão que possa ser somada às atividades de
leitura, como algo interessante não apenas para
os alunos, mas, sobretudo, para os professores,
maestros/maestrinas que têm na ponta da batuta
uma grande orquestra reconfigurada e reafinada a
cada ano letivo. Dito de outra maneira, espero
que esse repensar afete positivamente sua
prática, professor/professora, a fim de que ela
seja, antes de qualquer coisa, prazerosa.
Para se começar a desenvolver um trabalho com a
leitura que seja processual e não se limite a
uma atividade isolada e restrita ao horário da
aula, deve-se sempre partir da própria
finalidade da leitura. Por isso, nunca é demais
nos perguntamos sobre o porquê da leitura de
determinado texto ou, em termos mais gerais,
nunca perdermos de vista aquelas tão conhecidas
idéias sobre a importância do ato de ler. Assim,
não perco a oportunidade, de perguntar a você,
professor/ professora, por que é preciso ler?
Qual o poder e força da leitura na sociedade e
como você contribui para isso? Estas perguntas,
óbvias num mundo letrado, já foram respondidas
inúmeras vezes por diferentes teorias sobre
leitura e também pela própria sociedade, na
forma de discurso político, escolar/pedagógico,
jornalístico, dos pais de alunos, entre outros.
Em geral, todos esses discursos levantam a
bandeira da necessidade de desenvolver dois
aspetos desencadeadores da leitura: o Gosto e o
Hábito, que muitas vezes se transformam num
fantasma perseguido diariamente pelo professor,
já que o gosto não tem sabor, ficando o hábito
perdido em meio aos conteúdos e atividades do
planejamento escolar.
Mal experimentada, a leitura sustenta-se sobre o
crivo da interpretação única e correta, um saber
autoritário, inibidor do potencial crítico,
criador e contestador dos quase leitores. Esse
mal gosto da leitura nos coloca diante de um dos
seus aspectos mais desinteressantes: a tão
temida Obrigação, que a torna mais um conteúdo
escolar, entre tantos outros, e um enigma para o
professor. Na mesma direção, algo semelhante
acontece com o professor, se pensarmos no
primeiro depoimento acima, em que a leitura se
mostra de modo funcional. Lêem-se os textos que
serão trabalhados na escola e aqueles de jornais
com o intuito de se informar.
Curioso observar a frustração de maior parte das
professoras no momento em que discutíamos no
curso seus hábitos de leitura e sua relação com
a leitura. O fator “não tenho tempo” foi quase
um coro para justificar a falta de contato com a
leitura deleite – ler por prazer e vontade
própria textos literários. E ainda havia as
professoras que com muita honestidade diziam não
ter o hábito nem gosto de fazer leituras assim.
Porém, nem tudo está perdido e também não quero
com isso dizer que o sabor da leitura seja
sempre amargo dentro e fora da escola. As
professoras do curso foram unânimes em defender
e concordar comigo sobre o papel da leitura para
favorecer o desenvolvimento da sensibilidade, do
lúdico, da imaginação, da criatividade, do
diálogo e interlocução, o que pode, segundo
elas, ser vivenciado com muito prazer. E sem
dúvida, este prazer não está inscrito no texto,
mas começa no próprio professor, pelo seu
repertório de leitura, sua disposição e
interesse em desenvolver aquele esperado Gosto,
mesmo que fora da escola não tenha tempo ou
hábito/gosto de ler textos literários. Acredito,
então, que é possível e preciso experimentar
novos ingredientes, novos temperos, ou
simplesmente combiná-los de modo diferente, tal
como tratarei a partir de agora, propondo um
intercâmbio sensível e recriador entre duas
manifestações artísticas singulares: a dança e a
literatura. Pretendo aqui levantar questões que
possam viabilizar a leitura da expressão cênica
e do texto literário pelo ato leitor de
(re)criação do personagem e encenação.
Para iniciar esse desafio, é preciso ter em
mente a idéia de que leitura é uma atividade
inferencial para a qual mobilizamos vários tipos
de conhecimentos e por isso o sentido não pode
ser tratado como uma propriedade exclusiva do
texto, mas alguma coisa que construímos nesse
diálogo entre texto, autor e leitor. Daí podemos
ver o texto como um lugar de interação entre
autor e leitor, sendo o leitor um atualizador de
significações que veste o texto conforme sua
ótica, experiência, enfim as lentes de que
dispõe para enxergá-lo. Por todas essas razões,
jamais poderemos deixar de compreender a leitura
como um ato de Recriação, não apenas de
compreensão da realidade, mas principalmente de
transformação. E a meu ver essa transformação
começa na escola, por diferentes meios para
encorajar nossos alunos a fazer uma leitura que
vá além do estar sentado na cadeira, mas que
possa movimentar o corpo e usá-lo como veículo
de expressão e de interpretação. Além do mais,
se a leitura dita convencional, isto é, de
textos autorizados e comumente lidos na escola
como o literário, já é um modo de alargar
conhecimentos, redimensionar a nossa
percepção/compreensão sobre o mundo e o próprio
estar no mundo, a leitura da expressão e
interpretação cênico-corporal, neste caso a
dança, permite ainda ampliar o repertório
cultural do aluno e reconhecer o que é mal ou
pouco conhecido, tal como desabafou a professora
do segundo depoimento, pois nunca teve paciência
de ver/ler balé clássico. Este depoimento
sinaliza que a professora apenas começa a
descobrir o caráter textual da dança e o sabor
de sua leitura, algo que certamente também
afetará seus alunos.
A
descoberta, então, tem que começar no professor
para que assim ele possa reinventá-la com seus
alunos. E a (re)descoberta que faço aqui
juntamente com você professor/professora
ilustra-se pelo balé de repertório Coppélia, um
balé escrito por Saint-Léon e Charles Nuittier,
com música de Léo Debis e que estreou na Ópera
de Paris em 1870. Um balé de repertório como
este caracteriza-se pela encenação em atos,
neste caso três, que envolve quatro personagens
principais: o velho Coppélio, artesão de
bonecos, a boneca Coppélia, e o casal de
namorados, Franz e Swanilda, habitantes da vila
onde se passa a história. A boneca é posta na
janela sentada, imóvel, absorta no seu mundo
lendo um livro com muita concentração. De tão
perfeita e bonita, Coppélia desperta atenção e
curiosidade dos habitantes da vila, arrebatando
o coração do galante Franz, o que desperta
ciúmes em Swanilda. Pararei por aqui a descrição
da história, convidando os professores e
professoras que ainda não assistiram ao balé, a
desvendarem os fatos e se surpreenderem com e
desfecho desta história cômico-sentimental.
Para desenvolver um trabalho com este tipo de
texto na escola não basta pôr os alunos para ver
o espetáculo, é preciso antes de qualquer coisa
levá-los a perceber e a brincar com o próprio
corpo, sensibilizando-os para descobrir que com
o corpo é possível criar e se expressar. Por
isso, recomendo um trabalho cuidadoso que comece
pela respiração, tal como vivenciado nas aulas
do curso, seguido de exercícios de alongamento
que possam desautomatizar posturas corporais.
Caso não haja familiaridade com estes
exercícios, pode-se começar pela música, fazendo
os alunos se mexerem da forma como se sentem à
vontade e são levados pela melodia. De todo
modo, é preciso um mínimo de organização e
orientação para que este primeiro momento não
perca o sentido para os alunos. É importante que
se tenha em mente a necessidade de
desautomatizar o corpo, experimentar novas
posturas e movimentos, observando a respiração e
novas possibilidades de expressão. Vale lembrar
que o trabalho com o movimento, sua
experimentação e criação é também um modo de
preparar as ações e intervenções da vida adulta,
por isso a dança pode ser experimentada como um
artefato cultural e natural do próprio corpo.
Não é à toa que desde a infância, temos a
oportunidade de amadurecer nossa inteligência
cinestésica nas atividades lúdicas com o corpo,
o que nos ensina a conhecer e expressar nossas
emoções.
Dessa forma, um trabalho de leitura com a dança,
que pode envolver tanto a interpretação de um
balé, como as produções escritas e encenações
que derivam de sua interpretação, e mesmo a
interpretação do texto literário através do
corpo, é um trabalho crítico dos valores, usos e
costumes sociais, os quais muitas vezes reprimem
a nossa própria expressão e expansão como
sujeito único e social. Não se pretende aqui
ensinar os passos decodificados do balé
clássico, tampouco passar a imagem de que esta é
a única expressão autorizada da dança.
Contrariamente, insisto na importância de fazer
o grupo e cada um criar movimentos, seus
próprios passos, descobrir e interpretar formas
de expressão corporal. Uma boa maneira de
encarnar e amadurecer essa descoberta criativa é
construir um personagem. Um personagem encarnado
fará o aluno deslocar-se de si, acreditando ser
uma outra pessoa, o que representa despojamento
da própria personalidade. Para persuadir os
outros disso, ele terá que mobilizar recursos
expressivos extraídos do próprio corpo, que
considero um acervo de experiências e emoções.
Este personagem pode ser uma criação aleatória
ou pode estar ligado à trama que ainda vai ser
lida. Neste caso, o professor terá que fornecer
subsídios sobre os personagens, o que servirá,
após a leitura do espetáculo, como recurso de
comparação.
Passado este primeiro momento de experimentação,
leva-se os alunos a conhecer o balé e para isso,
torna-se fundamental propor questões alusivas
aos personagens. Focalizar os personagens,
particularmente Coppélio, Coppéllia, Franz e
Swanilda, percebendo como eles se apresentam e
evoluem na encenação, é uma boa maneira de
nortear a interpretação deste texto. Assim, é
possível mapear sua personalidade através dos
conflitos particulares e coletivos em que é
tecida a trama, e da relação que estabelecem
entre si e com outros personagens. Para perceber
isso, também é preciso orientar os alunos a
interpretar a linguagem corporal dos personagens
e os elementos cênicos - figurino, cenário,
adereços de cena, iluminação, melodia, assim
como a mudança de qualquer um desses elementos,
pois tudo no palco propõe sentido, não estando
em cena aleatoriamente. Durante este momento de
leitura da encenação, sugiro, assim como fizemos
durante o curso, que sejam feitas pausas para
que este primeiro contato não se torne enfadonho
e você tenha a oportunidade de ir lançando
questões sobre o texto, criando inclusive
expectativas sobre o que ainda irá acontecer.
O passo seguinte, após a leitura da encenação, é
o trabalho de (re)criação, que pode ser motivado
pela interpretação do cartaz de divulgação de
uma das encenações de Coppélia, ilustrado neste
texto e que constitui uma espécie de caricatura
do espetáculo. O trabalho de recriação
constitui-se de duas etapas: i) estudo do
personagem e sua expressão através do corpo, uma
espécie de laboratório numa brincadeira de quem
é quem e ii) a transformação da obra em outra
manifestação artística a ser encenada
(narrativa, teatro, cordel). Para a realização
da primeira etapa, o aluno se utilizará da
memória do seu corpo, auxiliada pelos
sentimentos que emergiram na leitura do balé,
podendo inclusive assumir palavras que não são
suas, dando voz ao personagem. Já a segunda
etapa funda-se no lema contar uma história é
montar uma história, em que se constroem modos
de ação no tempo e seu aproveitamento no formato
escolhido. Experimenta-se, assim, a história
numa outra dimensão com as devidas adaptações e
possíveis alterações. Uma boa dica é deslocar a
história para o nosso tempo, observando o que
permanece e o que se modifica em termos
materiais, visuais, e em relação a moral,
valores e costumes.
Por fim, vale lembrar que a opção pelo balé
Coppélia foi pessoal, assim como você
professor/professora poderá escolher outra
manifestação cênico-corporal. E do mesmo modo,
este trabalho de leitura pode ser aplicado ao
texto literário, mas numa outra direção em que
se parte da leitura da palavra para a expressão
cênico-corporal, o que pôde ser realizado no
curso através da leitura/encenação de crônicas
literárias. Porém não me resta mais espaço para
discuti-lo. Fica aqui a sugestão e desejo a você
um ótimo trabalho.
PARA SABER MAIS SOBRE O
ASSUNTO
LEAL,
Patrícia. Respiração e expressividade:
práticas corporais fundamentadas em Graham e
Laban.
São Paulo: Fapesp/Annablume, 2006. Este
livro põe a respiração como grande aliada da
criação e expressividade na dança. Propõe
exercícios respiratórios e criativos.
http://www.bailarinas.kit.net/
Este é um dos sites brasileiros mais
completos sobre a dança. Aqui você encontrará
fotos, dicas de livro, curiosidades sobre a
dança, informações sobre diversos balés de
repertório etc.
CALAZANS,
Julieta;
CASTILHO,
Jacyan;
GOMES,
Simone. (coord). Dança e educação em
movimento.
São Paulo: Contexto, 2003. Este livro reúne
vários textos que propõem diferentes aspectos da
interface entre dança e educação.
KOCH,
Ingedore;
ELIAS,
Vanda Elias. Ler e compreender: os
sentidos do texto.
São Paulo: Contexto, 2006. Com este livro, é
possível saber mais sobre a leitura como uma
atividade inferencial, em que o texto é o lugar
de interação entre texto e leitor.
(*)
Suzana Cortez é formada em Letras
pela Universidade Federal de Pernambuco e mestre
em lingüística pela Unicamp. É bailarina e
professora dos cursos de Letras e Pedagogia da
Universidade Salgado de Oliveira e atualmente
cursa o doutorado em Lingüística na Unicamp.
Atua na formação inicial e continuada de
professores, tendo trabalhos publicados sobre o
ensino de língua portuguesa e processamento
textual do sentido.
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