Neste intento, trarei livremente alguns apontamentos, impressões e reflexões gerados a partir de minha participação em duas recentes oportunidades em que “livros” foram debatidos em instâncias que atuam sobre sua legitimidade social: em primeiro lugar, a participação como ouvinte na mesa literária que ocorreu no dia 23/04/2009, por ocasião da programação do Primeiro Festival Internacional de Leitura de Campinas, cujo tema foi “As dimensões históricas do livro” e, em segundo lugar, minha presença na palestra “Retratos da Leitura no Brasil: Papel do Estado, Empresas e Sociedade”, proferida por Galeno Amorim, na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, no último dia 28/04. Na primeira ocasião, as apresentações dos professores Richard Hingley (da Universidade de Durham/Inglaterra), Andrés Karakin (da Universidade Federal de Minas Gerais) e João Ângelo Oliva Neto (da Universidade de São Paulo), sob curadoria do professor Pedro Paulo Funari (da Unicamp), objetivaram montar um mosaico a respeito do livro a partir da contribuição trazida por diferentes pontos de vista das Ciências das Humanidades. Cada apresentação, então, marcada pelas especificidades da produção e pesquisa dos participantes – na área da História, da Arqueologia e da Língua/ do Discurso – confluiu para uma percepção do livro como “artefato material e espiritual da história humana”, como introduziu o professor Pedro Paulo, dando espaço às explanações dos professores presentes: - Artefato que afeta o imaginário das pessoas, propôs o professor Hingley, ao analisar a história da obra (de História) “Britannia” publicada em 1586 por W. Candin. Best-seller por séculos, este livro instigou-o a investigar sobre como ele teria influenciado a percepção de uma nação (a Inglaterra) sobre si mesma. O livro, aqui, foi discutido quanto a este poder de constituir e reproduzir, na “rede enunciativa” dos livros de uma época, “a consciência de um tempo e espaço sociais”. - Artefato, veio a aproximar o professor Andrés, por sua vez, que é capaz de difundir e legitimar representações sobre o que seja, por exemplo, o arqueólogo: e isto, ele discutiu apresentando suas pesquisas sobre a “literatura arqueológica”. - Artefato, finalmente, que revela a configuração de discursos (verbais ou icônicos) de um tempo sobre o livro em si, como trouxe a apresentação do professor Oliva Neto sobre textos e imagens da Antiguidade romana a falar “dos livros”. O livro, “que tem poder” e que, enquanto objeto histórico, conta da História e influencia a sua escrita – porque “reflete”, porque “difunde”, porque “testemunha”, porque “permite” – nos parece, então, trazer uma dupla possibilidade de reflexão histórica pelo que até então está sendo percorrido: uma, relacionada a sua dimensão participante dos imaginários e consciência de uma época social. Outra, que o aponta como constitutivo, em si mesmo, de um imaginário e de uma consciência social sobre sua significação. Assim, temos a possibilidade de discussão do livro em duas interessantes e penetráveis vertentes: uma primeira, que o propõe como “difusor de representações várias” e, uma segunda, que o trabalha como “objeto de imaginário em si mesmo”, pela qual podemos aproximar-nos de uma importante questão do ponto de vista do entendimento dos processos de sua produção, divulgação e circulação nas sociedades: afinal, o que os livros nos significam, constituem e representam? E ainda: qual a leitura hegemônica acordada sobre ele em nosso tempo social? Como insistir na elaboração de uma compreensão histórico-humana sobre este artefato? Quanto às questões de representação, e valendo-me do que sugeriu o professor Oliva Neto, parece que o livro, da Antiguidade aos nossos dias, mostrou-se capaz de apresentar-se envolto a um simbólico de “cultura”, “possibilidade” e “oportunidade”, de forma surpreendentemente contínua. (Sabemos, contudo, que esta proposição suscita polêmicas que por hora não exploraremos; tomamos este comentário, justamente, pela abertura de indagações que ele nos convida a percorrer). De fato, pode ser interessante indagarmos sobre os sentidos das percepções e dos sentimentos constituídos historicamente, nas relações dos homens entre si e a natureza, com determinados artefatos da cultura – e aqui estamos falando especificamente do livro, sobre como o concebemos e o “sentimos”. Com isto, poderíamos nos voltar à discussão de como, hoje, nossa sociedade parece escolher a legitimidade de uma forma de concebê-lo que deve, pois, ser compreendida na história da teia dos discursos sociais. Neste exercício, podemos agarrar a possibilidade interessante (talvez, necessária) de racionalizar investigações e proposições que partem de posições e experiências culturais particulares de envolvimento com determinadas problemáticas e objetos, imprimindo àquelas um sentido sociológico apurado, que proponha a perguntação de perguntas importantes e cruciais (e que aqui não daremos conta de responder) do tipo: “O que é um livro?”; “Por que mesmo todos têm que ler, se é que têm?”; “O que significa defendermos a ‘causa da leitura’?” Falo de um esforço de reflexão para além do “já dado como dado”. Galeno Amorim, por sua vez, na posição de consultor de políticas públicas do livro e leitura no país, ao apresentar os resultados da pesquisa “Retratos da Pesquisa no Brasil” (realizada em 2007 e divulgada em 2008) (1) , discursa sobre o “papel extraordinário” da leitura para a cidadania do povo brasileiro. Nesta tarefa, a “não-leitura” parece emergir, em sua fala, como problema. E pergunto: por quê, quando e para quem “não ler” é um problema? Seja trazendo-nos como a leitura se expressa no imaginário da população brasileira (e, apontemos, a resposta espontânea relacionada à “conhecimento” foi a mais encontrada), seja trazendo os resultados de curiosas perguntas como “Você conhece alguém na vida que já venceu na vida graças à leitura?” (grifos meus), os livros, com Amorim, aparecem imersos neste imaginário aparentemente consensual (e situado) que parece conferir-lhes o status de “entidades quase sobrenaturais” que, o brasileiro sabe (embora ainda não compre tantos livros), podem “transformar” e fazer o país caminhar em seu projeto de “desenvolvimento cultural” (palavras do consultor). Mas apenas se as escolas colaborarem e convencerem da importância da leitura (e, portanto, de que ter livros é importante). Se o Estado atuar com fortes políticas públicas de difusão do livro. Se o pessoal da área da produção do livro se atentar para aquilo que o brasileiro gosta de ler e deve ler mais. Livros para a cidadania. Livros, livros e livros: por todos e para todos. A gente tem que ler como respira. Tudo isto reclama-nos, ouso sugerir, uma discussão que resgate o teor emblemático destas afirmações – de um ponto de vista de discussão sobre os processos de fetichização do livro e, ainda, da imposição de uma política cultural nacional (de fins econômicos e culturalistas inerentes e aos quais o próprio sentido de indústria cultural ganha revitalização) nos termos já alertados pelo Professor Perrotti ao analisar políticas de “promoção da leitura”). Ele discutirá as mesmas como “filhas” de:
E então o que está em pauta é a negação dos livros? Seja por convencimento teórico, seja por sentimento, afirmo que não, realçando ainda o entendimento que (1) o reconhece como resultado das lutas do homem em sua história de conhecimento da natureza e de si mesmo e (2) que reflete sobre os domínios que ele pode oportunizar e implicar em uma sociedade de escrita e, enfim, de organização capitalista. O que aqui se questiona é o sentido de políticas que, partindo de determinadas convicções, aparentemente reduzem e simplificam questões atreladas à emancipação humana (como a do acesso à língua e a seus sistemas e criações, cujo domínio pode vir a ter relação com práticas de cidadania), à defesa de que o ter (que implica, neste caso, distribuir, dar, comprar) livros, implica uma relação de causalidade direta com a posse de habilidades alcançadas, historicamente, pelo devir da experiência humana. Dar livros não significa incentivar as experiências de apropriação deles. E estamos discutindo isso? Por que sim ou por que não? Hoje, entre livros, textos que falam dos livros e encontros que falam deles também, entre imagens e idéias do livro que ora dão conta de sua dimensão histórico-humana e ora mostram o trabalho de apropriação de alguns grupos sobre representações do que seja a sua natureza, minha condição é a da indagação. E a minha proposta, portanto, é de não deixarmos de perguntar as perguntas primeiras e mais fundamentais, insistindo pela não-unilateralidade e pragmaticidade da nossa busca de respostas. Ao percorrê-la, suponho, poderemos ser acompanhados da tentativa de superar “dogmas de fé” que podem afundar-nos na concepção e na defesa de uma possível ideologia perversa do livro, calcada em “boas intenções”: que se propõe a convencer a todos, a-historicamente, de que “ler é preciso”, que “quem lê vence na vida”, que “ler é ‘a’ possibilidade de transformação” e, enfim, talvez, como consequência, que “é preciso ler aquilo que se define como leitura de boa qualidade” para que se seja gente de verdade! O que nos confunde e confunde, sob meu ponto de vista, a natureza realmente frutífera do debate sobre políticas públicas de educação (e cultura) emancipatórias e realmente democráticas. Resgatando Bourdieu, quando sugiro que coloquemos em debate a questão das condições nas quais se produz a tão atual “necessidade da leitura”, compartilho os caminhos de uma busca pessoal sobre a sociologia do livro e de sua institucionalização como bem cultural, atrelada ao pressuposto de que “... o que caracteriza o bem cultural [e as marcas de sua produção e de seu consumo] é que ele é um produto como os outros, mas com uma crença, que ela própria deve ser produzida” (BOURDIEU: 2001, p. 240). Investir, então, na discussão sobre o poder (e esta ideologia do poder) dos livros, escancarada em seus limites e possibilidades pelo próprio autor, pode ser fonte renovadora de nossos conhecimentos e estudos. Assim, resgatar e desvelar os “mitos de fé” envoltos ao livro e à leitura aqui nos significaria partir da compreensão de que
Mas qual compreensão potencial, que parte de uma teorização histórico-concreta da constituição dos homens, relacionada ao livro e ao ato de ler, poderia nos orientar para além da proposição de projetos a-históricos, pragmáticos e mistificadores sobre os livros e a leitura? Aponto, como início para nossas reflexões, que a prioridade apresentada por Amorim enquanto consultor de políticas públicas do livro e da leitura – de atuar, neste momento brasileiro, mais do que nunca, “sobre o imaginário da importância do livro na população brasileira” – parece-me por hora uma resposta insuficiente, ainda que sejamos capazes de compreendê-la (historicamente) e de considerar aspectos potencialmente interessantes que a ela se postam atrelados. Sua proposição, na verdade, convida-me, de forma particular, a melhor conhecer e a melhor organizar as crenças legitimadas (e os ideários acreditados) que movimentam o mercado dos livros (crenças que são fruto, pois, do trabalho de apropriação, histórico, de representações historicamente constituídas sobre o que sejam eles). Com isto, apresento a orientação de nosso caminho de pesquisa, que intenta debruçar-se na compreensão dos imaginários compartilhados e/ ou hegemônicos da época atual sobre os livros, “marcados” pela especificidade da configuração histórico-social-cultural da qual participamos – afinal, quais seriam estes imaginários, como se constituiriam e teriam se constituído, como se difundiriam e em função de quais pressupostos? Isto, porque trazemos a idéia de que os mesmos estabelecem relações com as formas de se produzir, divulgar e de se tentar controlar a circulação dos bens culturais que aqui falamos . (2) Participo do “acordo” – ampliado pelas discussões oportunizadas pela FILC – que compreende que o livro, este artefato constituído historicamente pelo trabalho da coletividade humana, deve “poder” voltar-se a ela, inclusive abrindo a possibilidade para a discussão, o estudo e o reconhecimento de suas conquistas. Não refuto que políticas de acesso e circulação do livro devam ser buscadas e discutidas no nível da sociedade civil como um todo, a partir de estudos e debates sobre a história do livro, das práticas de leitura e dos materiais de leitura de nossa sociedade. Sociedade que deve mostrar-se apta a discutir-se, inclusive, na perspectiva de um projeto de “nação” que acreditou só poder assim constituir-se (curiosamente de forma democratizadora), por meio de “homens – e livros” (um ideário burguês ocidental transposto para nossa realidade que não pode deixar de ser problematizado, investigado e compreendido nas conseqüências que legou à história político-cultural de nosso país e de seus diversificados grupos sociais). Assim, neste momento “dos inícios” de nossas pesquisas, falar do livro, a meu ver, parece, confirmar-se enquanto esta oportunidade sempre instigante, complexa, em aberto, de falar sobre o “o quê, o quando, o para quem, o para quê e o como” são “dados a ler” materiais de leitura em uma sociedade. De falar sobre o que aí é permitido. Ou querido. De como as coisas passam a aí serem representadas e apropriadas. E, também, de ‘poderes potenciais’ – não, todavia, totais – das produções simbólicas dos homens, entre as quais, compreendo a situação do livro.
NOTAS (1) A pesquisa está disponível no site do Instituto Pró-Livro, que a promoveu. O Instituto é uma organização social civil de interesse público, criada em 2006 e mantida com contribuições do mercado editorial; tem objetivos, metas e ações voltadas ao fomento da leitura e a difusão do livro. A pesquisa, que procura “diagnosticar e medir o comportamento leitor do brasileiro”, pode ser acessada em: http://www.prolivro.org.br/ipl/publier4.0/texto.asp?id=48 . Galeno Amorim foi seu coordenador. (2) Pretendemos com os objetivos particulares de nossa pesquisa, sobre as representações que movimentam o campo da (intensificada) produção de livros para as crianças no Brasil atual ampliar esta discussão na área específica do livro para a infância: que representações de “livro” e de “infância” marcariam a produção deste artefato – o livro infantil? REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMORIM, Galeno (Org.). Políticas Públicas do Livro e leitura. Brasília, Brasil: OEI; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2006. CHARTIER, Roger. “Textos, Impressos, Leituras”. In: CHARTIER Roger. História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand, 1990, p. 121-139. BOURDIEU, Pierre; “A Leitura: Uma prática cultural. Debate entre Pierre Bourdieu e Roger Chartier”. In: (Org.). CHARTIER, Roger. Práticas da Leitura. 2ª edição. São Paulo: Estação Liberdade, 2001, p. 231-253.
PERROTTI, Edmir. Confinamento Cultural, Infância e Leitura. São Paulo, Summus: 1990. __________________ “Bibliotecas – Meios de Acesso ao Livro”. In: ROCHA, José Carlos (Org.). Políticas Editoriais e Hábitos de Leitura. São Paulo: Com-Arte, 1987, p. 29-36. ____________________________________ (*) Juliana Bernardes Tozzi - Formada em Pedagogia pela Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas, foi professora da Educação Infantil e do Ensino Fundamental e coordenadora pedagógica da rede particular. Hoje é mestranda da Faculdade de Educação (Unicamp) na área “Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte”) e pesquisadora do grupo ALLE, estudando a produção cultural voltada à criança com enfoque sobre o “livro infantil”.jornalista e crítico de arte - Jornal Correio Popular, Campinas, SP. |
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