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Ao serem descontextualizados (ou seja,
retirados de seu espaço original) e
desmembrados em trechos e partes, os textos
de ficção e poesia ficam, de certo modo,
desfigurados e perdem força. |
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SOBRE LIVROS DIDÁTICOS E LIVROS DE FICÇÃO E
POESIA
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Ricardo
Azevedo (escritor)

Sem
entrar no mérito de questões metodológicas ou discutir
a existência de diferentes linhas pedagógicas, a
importância dos livros didáticos no processo
educacional tem sido um fato óbvio e indiscutível.
Com os livros
didáticos entramos em contato com informações
fundamentais.
Através deles
adquirimos conhecimentos sobre o funcionamento e a
estrutura da nossa Língua, sobre Matemática, Biologia,
História, Geografia, Física, Química etc.
Livros didáticos,
além disso, acabam sendo introdutores do pensamento
lógico e analítico.
Com eles, descobrimos
e aprendemos a identificar, recortar e analisar
diferentes campos do conhecimento. E mais: aprendemos
a pensar de forma organizada, coerente e lógica. É que
os conteúdos didáticos costumam ser apresentados e
desenvolver-se de forma objetiva, metódica, lógica,
precisa, hierárquica, acumulativa e seqüencial. Graças
a isso, mesmo sem perceber, acabamos por aprender
também a desenvolver e apresentar nossas idéias de
forma clara, lógica e objetiva.
Outras
características relevantes dos livros didáticos são:
1) seu utilitarismo (pretendem ensinar um assunto
determinado, em geral anunciado na capa como, por
exemplo, “Matemática”.); 2) seu caráter eminentemente
informativo (trabalham a partir de informações
convencionais ou oficiais e pretendem divulgá-las); 3)
seu discurso impessoal, lógico, coerente e unívoco
(não podem conter ambigüidades, incoerências e
contradições, afinal, pretendem que 100% dos leitores
tenham uma mesma e única interpretação); 4) necessitam
de atualização periódica (informações e métodos tendem
a tornar-se obsoletos com o passar do tempo).
Em linhas gerais, os
livros didáticos – sintetizando, livros de introdução
ao conhecimento geral e de divulgação técnica e
científica – nos acompanham do ensino infantil ao
universitário. Somente na faculdade começamos a
eventualmente substituí-los por livros de cunho
puramente científico e filosófico. Tais obras não
tratam mais de introduzir ou divulgar informações mas
sim de conhecer os diferentes pontos de vista
implicados no estudo de determinada matéria,
discuti-los e criticá-los para depois construir, se
possível, uma nova interpretação.
Pode-se dizer que na
construção do hábito da leitura, considerando o
formato do atual sistema educacional, livros
científicos e filosóficos têm como precursores os
livros didáticos. Estes nos capacitam para a leitura
daqueles.
Voltando ao âmbito do
ensino infantil, fundamental e médio, muitos livros
didáticos, para desenvolver ou ilustrar suas matérias,
têm recorrido ao uso de trechos de textos de ficção e
poesia. Trata-se de um assunto amplo e complexo.
Devido ao pouco espaço, ele aqui será apenas levantado
através de tópicos:
1. Textos de ficção e poesia realmente podem dar uma
ótima contribuição aos livros didáticos, servindo como
ilustração de lições;
2. A introdução de textos de ficção e poesia em livros
didáticos, numa sociedade que quase não lê, repleta de
crianças que, em geral, não têm livros em casa, pode,
de fato, ser uma forma de divulgar a literatura e
fazer com que essas crianças tenham acesso a textos
literários;
3. Por outro lado, sabidamente, muitas crianças
brasileiras, por razões sociais, em matéria de livro
praticamente só têm acesso aos didáticos distribuídos
pelo governo. Para muitas dessas crianças, a
associação entre livro e lição é automática. Pois bem,
ao se deparar com trechos de textos de ficção e poesia
em seus livros didáticos, elas podem acabar vinculando
mecanicamente livros didáticos a livros de literatura,
sendo levadas a acreditar que são a mesma coisa,
quando não são;
4. Mas afinal, o que caracteriza os livros de
literatura? Poderíamos, mesmo que precariamente,
resumir que: 1) são textos de ficção e poesia (não
abordam fatos concretos mas sim realidades
inventadas); 2) não são utilitários (não têm uma
função clara nem qualquer pretensão de ensinar ou
transmitir informações objetivas mas, sim, de
compartilhar emoções, eventos humanos, conflitos e
espantos); 3) costumam tratar de temas não passíveis
de lições: as paixões; a busca do auto-conhecimento;
utopias pessoais; sonhos e conflitos humanos;
sentimentos como amor, ódio, desespero, inveja e
orgulho; a dificuldade em separar realidade e ficção;
as lutas do velho contra o novo; a construção da voz
pessoal e a busca de um sentido para vida, entre
muitos outros assuntos, vale repetir, não passíveis de
lições, embora cotidianos e de extrema importância
para todos nós; 4) também apresentam seus temas de
forma organizada mas a partir de uma lógica própria e
de recursos como, por exemplo, a narrativa ou o poema;
5) utilizam sempre, mesmo que em graus diferentes,
discursos subjetivos e pessoais (são pessoas tanto o
“eu lírico” da poesia, quanto as vozes de narradores e
personagens); 6) por serem discursos subjetivos e não
objetivos, pragmáticos e impessoais, podem
perfeitamente ser ambíguos, obscuros, analógicos,
incoerentes e contraditórios (podem ser
plurissignificativos e admitir diferentes
interpretações); 7) podem também se dar ao luxo de
usar metáforas, ironias, inventar palavras, recorrer a
ritmos, aliterações, trocadilhos e rimas, em suma,
podem brincar com as palavras; 8) prescindem de
qualquer tipo de atualização salvo, eventualmente, a
ortográfica;
5. Ao serem descontextualizados (ou seja, retirados de
seu espaço original) e desmembrados em trechos e
partes, os textos de ficção e poesia ficam, de certo
modo, desfigurados e perdem força. Um trecho de um
romance é diferente do romance inteiro. Um texto
afastado dos outros textos que compõem a obra de onde
foi retirado pode, por vezes, adquirir outro
significado e levar a uma leitura equivocada. Um poema
solto, desacompanhado de seus pares, não é mais parte
de um conjunto expressivo e significativo criado pelo
poeta;
6. Num ambiente carregado de lições, métodos e
informações – a escola – como fazer com que o leitor
não confunda textos didáticos, técnicos e informativos
com textos de ficção e poesia?
7. Como avaliar os prejuízos de tal confusão? Se a
escola pretende formar pessoas que saibam expressar
suas idéias e sentimentos, como afastá-las do discurso
subjetivo, analógico e inventivo? Se deseja formar
leitores, como fazê-lo com pessoas que não saibam o
que é ficção e poesia? Como admitir que indivíduos
passem anos na escola e saiam despreparados para ler
livros de ficção e poesia e nem saibam que estes podem
manipular a linguagem de forma inesperada e inovadora
e abordar temas concretos e humanos de alto interesse,
embora não passíveis de lições, como as paixões, a
busca do auto-conhecimento, a dificuldade em separar a
realidade da ficção e tantos outros?
As questões, como se vê, são múltiplas e o espaço
exíguo.
A utilização de trechos de textos de ficção e poesia
em livros didáticos tem contribuído ou, ao contrário,
tem prejudicado o processo de formação de leitores em
nosso país?
Trata-se de uma pergunta que se impõe e precisaria ser
melhor, e urgentemente, discutida.
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